quinta-feira, 15 de março de 2018

FAJÃ DO ARAÚJO – NO ATLÂNTICO NORDESTE 
S. Miguel - Açores 


Durante o século XX o recreio nas Fajãs Açorianas de alguma forma esteve em moda. É verdade que era mais recreio para uns do que para outros. Mas foi essa imagem, mais ou menos romântica, que foi passando dumas gerações para as outras.

Todavia nem sempre foi assim. Uma fajã era um conjunto de minúsculas explorações agrícolas implantadas sobre uma “enorme quebrada”. Estes territórios “transitórios” eram depósitos de derrocadas colossais oriundas de abalos telúricos destrutivos, e sujeitos, de um lado, ao ataque constante das ondas do mar e, do outro, à recarga periódica de novas “quebradas”.

Nesses tempos, viver numa fajã era um perigo mas, para alguns, viver em terra firme era um drama.

A terra firme, ou as boas terras, no Antigo Regime (antes de 1834), eram ocupadas por personalidades ou instituições que fundavam a legitimidade da posse e domínio na precedência ou nas armas, no “pedigree” ou costados e na determinação divina. Quem estivesse de fora dessa “fortaleza” dominadora, dificilmente nela conseguiria entrar. 
Nessas épocas o conceito de escravatura era extremamente elástico e essa elasticidade era olimpicamente explorada por quem dela tirava proveito. Para os “deserdados”, de pouco lhes serviriam os seus dotes físicos ou intelectuais para entrar nesse “Céu ou Reino dos escolhidos”.



Para além da questão do regime, havia a questão demográfica. População e recursos cresciam a velocidades diferentes. Enquanto a população crescia em progressão geométrica, a produção de alimentos crescia em progressão aritmética. A prazo, em qualquer território, com a passagem do tempo os recursos tornar-se-iam insuficientes e era necessária válvula de escape – com partida do excesso de população.

Mas a sina desses “deserdados” não se ficava pelas razões de regime e demográficas; havia ainda as de ordem económica. A transacção de propriedades era coisa rara. Os poucos que detinham privilégios patrimoniais ambicionavam amplia-los, levedando as rendas e aplicando-as na promoção da sua imagem, do seu poder, ou na sua implantação noutras geografias mais solarengas ou produtivas. E quem determinava essas rendas era quem tinha força para isso; o terratenente - Rei, Príncipe, Duque, Bispo, Conde, Morgado ou outro privilegiado. Quanto maiores fossem as rendas, melhor (para eles). Para que esses rendimentos crescessem era necessário aumento da produção. Mas como a população aumentava mais que a produção, cabia cada vez menos a cada um dos “não abençoados pelo reino da terra”.

Nessas circunstâncias, entre a penúria em “terra firme” e autonomia numa perigosa fajã, muitos optavam pela última. Nessa, apesar de árduos trabalhos necessários para tornar aquilo produtivo e habitável, o isolamento dava alguma liberdade e esperança; esperança de que o trabalho seria recompensado com algo mais do que o mínimo necessário à sobrevivência.

Assim nasceram e foram sendo ocupadas a maioria das fajãs, nomeadamente as Micaelenses.

No caso da Fajã do Araújo (ou a do Lombo Gordo, que fica ao lado), no extremo nascente da Ilha, no Concelho do Nordeste, as forças que empurraram população para desbravar e humanizar aquele espaço foram semelhantes às que ocorreram noutros similares. Sim, viveu-se por ali. As pocilgas de pedra junto das construções provam-no. Durante séculos aquilo foi sendo um Limbo, entre um Céu de esperança e de liberdade e uma Terra onde em cada dia se tinha de conquistar, guardar e proteger o necessário à vida. 

Naquela fajã, que como a da Ribeira Quente terá sido bem maior no passado, a vida terá decorrido calmamente, entre as ameaças de derrocadas da falésia e da fúria tempestuosa do mar. Por ali olhava-se diariamente para a linha do horizonte, mas sem especial ambição, e sem sequer se imaginar que do outro lado tinham vivido longínquos antepassados.

Todavia os períodos de “calmaria” não seriam longos. Às naturais dificuldades de sobrevivência neste isolado fim de Ilha, adicionavam-se as ameaças de piratas, corsários e navios de Sua Majestade que se abrigavam na baia defronte, entre Ponta da Marquesa e a "Taprobana" do Lombo Gordo. Em determinadas estações do ano aquela baia era o espaço costeiro mais abrigado da Ilha (não existia doca em P. Delgada ou Vila Franca). Por ali havia abrigo, havia água potável, havia areal onde reparar navios e, se algo mais de útil também existisse, era também tomado. Se existiram núcleos humanos, ultraperiféricos, que tiveram de aprender a conviver com essa espécie de aventureiros e salteadores, este foi provavelmente um deles. Se calhar durante algum tempo viveram em conjunto por ali, misturando-se piratas e nativos, quiçá de forma semelhante ao “Pirate’s Cove”. Por ali não havia necessidade de Alfândega, "Vistos" ou de "Passaportes", nem era aplicada a lei de proibição de emigração (Lei de 4 de Julho 1758, assinada por El-Rei  D. José e Thomé Joachim da Costa Corte-Real). Nesta fajã, Robinson Crusoe ter-se-ia sentido “tão bem” como noutra ilha das Caraíbas ou do Pacífico.

Nos intervalos entre as agruras típicas dum sítio destes, vivia-se. Poucos de fora sabiam da vida que por ali fluía e poucos de terra iam lá cobrar dizima. Era “Terra Incógnita”, algures entre Nordeste e Povoação, regida por rotinas próprias, com eventual fartura no Verão e penúria no Inverno. A infância que por ali corria, apesar de penosa em alguns momentos, era tão feliz como qualquer outra infância em qualquer outro lugar. 


A vida por estas fajãs manteve-se assim, com tonalidades típicas da Idade Média, até chegarem as primeiras estradas ao Nordeste. Primeiramente o Caminho do Concelho (Estrada Real -1860s) e, depois, a Nova Estrada da Tronqueira (1915/20) e com a chegada do primeiro automóvel. Esta última data marcou significativamente este Concelho (e de tantos outros). E foi a partir dela que começaram a deixar rasto os usos da Fajã como local de exploração de vinhas, de exportação de vinho e local de recreio dos maiores proprietários.


Foi essa imagem idílica e romantizada de veraneio na Fajã que chegou ao final do século XX. Os mais antigos retratos e relatos que nos chegaram foram os da influente e abastada família Melo Machado Macedo, depois substituída pela do Pe Rogério Machado, pela de Francisco (Chico) Botelho e por outras. 

Entre os anos 60s e 80s boa parte dos adolescentes e jovens das redondezas, que de alguma forma tinham Salvo-conduto” para ali passarem uma semana, aproveitaram essa oportunidade. Chegou quase a instituir-se ritual anual de acantonamento de estudantes, primeiramente organizado pelo P.e Rogério Machado e, depois, pelo P.e (depois Monsenhor) Augusto Cabral.

Até 2007 o acesso a esta fajã era feito apenas e só por atalho, a partir da Pedreira. Mas nesse ano as coisas mudaram. Aproveitando conjuntura “favorável”, o Município lançou e concluiu um ramal de acesso automóvel à Fajã, descendo pelo vale da Ribeira do Tosquiado e terminando junto da foz. Esse, e os seguintes, foram os “Anos do Dragão” daquele refúgio costeiro. A partir daí notou-se incremento inusitado de compras e vendas, recuperação e construção de casas, plantação de novas vinhas e pomares e, ainda, jardinagem particular seguindo modelos provavelmente das Bermudas. Essa foi época de fartura e de acção. As estadias e acantoamentos dos anos 60s a 80s, em que se reviviam os idos anos 20s e 30s adaptados às imagens chegadas da emigração do Novo Mundo, do cinema e da televisão, deram lugar a nova onda de entusiastas que valorizava mais o fazer do que o estar e desfrutar.

E assim foi até à pouco mais de um par de anos atrás. As figuras notáveis que lá tinham propriedades, por uma ou outra razão foram-se afastando. O “novo” (de 2013) executivo municipal pareceu desligar-se daquilo, e apareceu uma “Belga”, ou alguém através dela, a comprar tudo o que era vendável. E as propostas de compra foram tais que pouca coisa ficou por vender.


E assim está aquela fajã. Quem vendeu teve de lá sair e quem comprou ainda não mostrou ao que vinha. Dois anos, mais ou menos, passaram e já se notam as consequências. Canas, silvas, incensos e conteiras tem, alastrando-se, dado palmas. Das épocas das animadas vindimas, pescarias pouco ficou. Das noitadas de jogos de cartas e cantorias e dos edílicos acantonamentos e acampamentos estivais, pouco resta além de memória. Dessa época permanecem as radiosas madrugadas e o seu notável e singular efeito cromático projectado na encosta, o cheiro a incenso, conteiras e a musgo das lapas, o som nocturno dos cagarros e do rebolar das pedras embaladas pelo mar. Por aqui e por ali, nas estações próprias, aparecem ainda uns cachos de uvas desgarrados e uns figos que os melros ainda não encontraram. 

Oxalá a vida continue a fluir por ali, e que aquela natureza continue a encantar algumas gerações de Micaelenses que por lá ainda não passaram.



MJMB
Correio dos Açores
27/2/2017








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1 comentário:

  1. Em dialogo no FB a propósito da “estrangeira dos milhões”, que comprou a maioria das casas e terrenos da Fajã do Araújo por volta de 2014/5/6.

    Jorge Araújo: Desconfio. Eu nada tenho lá mas se tivesse não vendia. Eu não conheço a sra. mas pelo que ouvi é uma pessoa relativamente nova. Pergunto onde vem o dinheiro? Como o arranjou? Não estará a ser cometidas ilegalidades? Só o tempo nos dará respostas.

    Resposta: “Se assumirmos que a natureza humana não mudou na última meia dezena de milhares de anos, não será difícil formular hipóteses. Depois, a passagem do tempo mostrará quais as hipóteses que não fazem sentido e onde estará a razão, a mão ou a vontade que gera semelhante acção (um Europeu continental a comprar uma remota fajã numa ilha afastada no meio do Atlântico). E descobrindo isso, é mais fácil antever as consequências dessas compras.
    A questão da legalidade é relativa. Para quem tem poder, quando a lei colide com um interesse, não se altera o interesse mas sim a lei. Neste assunto de fajã isso não parece ser o caso, uma vez que é assunto demasiado irrelevante no contexto Regional para justificar habilidades dessas.
    Todavia não estou a fazer qualquer apologia do imobilismo; longe disso. O que temo são os extremos: ou seja, por um lado, a alteração completa do “ADN” ou do “ecossistema” humanizado das comunidades que sucessivamente ocuparam aquele local ou, por outro, a devolução completa daquela fajã à natureza (ao mato).
    Nesta perspectiva julgo que ainda fica uma grande faixa de soluções globalmente aceitáveis. Mas se tiver de acontecer alguma mudança drástica, pelo menos que fique registo significativo daqueles e daquilo que por lá passou. E por lá passou muita coisa, durante séculos, cuja memória se perdeu completamente.

    Também é preciso não esquecer que toda aquela área está sujeita a Planos de Ordenamento de variada natureza, tutelados por variadas instituições. Esses Planos retiram imensos direitos aos proprietários. Um deles é o Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) que define toda aquela área como Espaço Natural. Segundo esse Plano, quase nada se pode fazer ali. Mas na vizinha Fajã do Calhau passava-se o mesmo e, mesmo assim, abriu-se a grande via de acesso que todos conhecemos. Portanto, não será um voluntarioso estrangeiro que, com dinheiro mas isolado, construirá ou destruirá aquilo. Se o POOC se desviar, suficientemente, e aceitar uma proposta de grande alteração, é porque alguém com poder para isso o determinou.
    Pelo lado contrário, se a “investidora” se fartar daquilo como presentemente se encontra e se ela perder a motivação ou força para mais diligências, aquela fajã corre o risco de cair no abandono. E se cair no abandono desaparecerão os sinais físicos da memória daqueles que por ali passaram, incluindo daqueles cuja infância ou juventude, em regime de recreio ou outro, se intersectou com aquela paradisíaca natureza.”

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